alfabeto

30.1.07

Lila Maia


Vidência


Já me curvei o suficiente para entender a vida.
Nem quero o velho ofício que passa de pai pra filho.
Gosto das frutas que amadurecem secretamente
conheço o que dentro de mim se fecha
e é esculpido diariamente.
Desde que nasci tenho um verbo presente: morrer
e tantas vezes me sinto montada na fera,
outras apenas arrastada como a cômoda de peroba
que não cabe no quarto.

Acreditar naquela pequena luz de uma estrela anã
é dizer sem pressa uma reza mansa.


12.1.07

Léssia Ukrainka


Se todo meu sangue


Se todo meu sangue escorresse assim
como estas palavras! Se a vida passasse
como a luz vespertina que desaparece
desapercebida... pois quem colocou
a mim como a guarda no pranto e ruína?
E quem obrigou a aliviar os que vivem
no caleidoscópio da dor, da alegria?
Quem foi que plantou no meu peito o orgulho?
Quem me fez empunhar a espada cortante?
Quem, ostentando, a sagrada auriflama
de cantos e sonhos e a mente rebelde
deu a ordem suprema: Não largues a tua arma,
não cedas, não caias não canses jamais!
Por que eu obedeço o estranho mandato,
não ouso deixar esse campo de honra
ou sobre a espada cair com meu corpo?
O que não permite dizer simplesmente:
Eu cedo, Destino, tu és o mais forte!
Por que, ao lembrar as humildes palavras,
aperto meu gládio invisível no punho
e gritos guerreiros ressoam no peito?


3.1.07

Luís Vaz de Camões


Vantagens domésticas


Conversação doméstica afeiçoa,
Ora em forma de boa e sã vontade,
Ora duma amorosa piedade,
Sem olhar qualidade de pessoa.

Se depois, porventura, vos magoa
Com desamor e pouca lealdade,
Logo vos faz mentira da verdade
O brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,
Que o pensamento julga na aparência,
Por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,
E não falo senão verdades puras
Que me ensinou a viva experiência.