alfabeto

27.1.06

Um breve retorno à letra A:


Reflexos


Olho-te pelo reflexo

Do vidro
E o coração da noite

E o meu desejo de ti
São lágrimas por dentro,
Tão doídas e fundas
Que se não fosse:

o tempo de viver;
e a gente em social desencontrado;
e se tivesse a força;
e a janela ao meu lado
fosse alta e oportuna,

invadia de amor o teu reflexo
e em estilhaços de vidro
mergulhava em ti.


Ana Luísa Amaral

20.1.06

Ievguêni Ievtuchenko


Encontro em Copenhague


Sentados no aeroporto e, Copenhague
atacávamos juntos o café.
Ali tudo era belo,
confortável —
ambiente refinado como quê!
E de súbito
aquele velho surgiu,

japona simples e capuz verde oliva,
pele curtida
por lufadas salinas,
ou melhor,
não surgiu,
exsurgiu.

Caminhava,
singrando por turistas,
como se houvesse largado o leme faz pouco,
feito espuma do mar
a barba híspida

branca
emoldurava-lhe o rosto.
Com sombria decisão de vitória
caminhava,
erguendo uma onda volumosa,

através de antiqualhas
de um moderno postiço,

através do moderno postiçando o antigo.

E abrindo a gola da camisa rústica,
ele, rejeitando o vermute e o pernaud.
pediu ao balcão uma vodca russa
e repeliu a soda com um gesto:
"No..."

Mãos gretadas, com cicatrizes,
curtidas,
sapatos grossos, arrastando solas,
calças incrivelmente encardidas, —
era mais elegante
do que todos em roda!

A terra sob ele como que afundava,
com o peso daquelas passadas.
Um dos nossos sorriu-me:
"Ei!"
Veja se não parece Heminguay!

Caminhava,
expresso em gestos curtos,
andar de pescador, pesado, lento,
todo talhado num rochedo bruto,
como através das balas,

através dos tempos.

Caminhava, encurvado, como se na trincheira,
abria caminho entre pessoas e cadeiras...
Parecia-se tanto com Heminguay! ...
Depois fiquei sabendo:

era Heminguay.


tradução: Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman.


Instantâneo


Tem olhos escuros como poços profundos a salvo do sol. Vez em quando brilham como o mar antes da aurora ou logo após o pôr-do-sol. Dentro dela, um buquê de sonhos irrevelado se agita. Um novelo de possibilidades se fia. E em breve, quando se fizer plena a sua primavera, resplenderá como um campo de girassóis recém-floridos.


14.1.06

Irene Lisboa


Quem não sai da sua casa

Não atravessa povos, montes, vales,
Não vê as cenas bíblicas das eiras,
Nem mulheres de infusa, equilibradas,
Nem carros lentos, chiadores,
Nem homens suados,
Quem vive como o insecto cativo no seu redondel,
Cria mil olhos para nada...


Íntimo


O maço esvaziado de cigarros, a xícara de café, ainda a meio, o livro aberto na página marcada, a toalha úmida, a quase-ausência e o perfume imiscuído nos lençóis.


2.1.06

Maju Costa, porque é ano-novo


Tarefa


como quem viola um templo
desvirgino o livro
com a espátula

o grande tesouro
é preciso saber procurá-lo.


Um beijo de ano-novo feliz, pra você, Maju, minha amiga-irmã mais-que-querida.