alfabeto

27.4.06

Um breve retorno à letra E:


S O N E T O


Sou neto das tempestades
que sopram pelos desertos
um destino de saudades.
Com seus nós quase desfeitos

eu trago a garganta aberta
escancarada vazando
uma voz suja de terra
que filtra os dias e as noites.

Na ponta de minha língua
o tempo acaba ou começa?
Brota em mim o som da flauta

brota mais — a flor do sangue —
ao sol que queima sem pena
nesse deserto tão grande.



Elizabeth Hazin


19.4.06

Jacineide Travassos


Natureza Móvel com Peixes Vermelhos


O mundo faz-se do olhar
espaços sugeridos pela diagonal
planos sem volume
dissolvem-se na memória

As mãos lentamente
erguem a escritura das ondas
O olhar afoga-sepor entre o anil do céu
e o musgo das árvores
compõe-se o quadro dos amantes
navega-se sobre as águas do ar
plumas semeadas de olhos

O navio alça-se pássaro
lança-se em águas etéreas
a âncora faz-se ânfora
os corpos entrelaçam-se
na trilogia do sonoro do diáfano do móbil
na ânsia do toque
os olhos
mergulha-os no aquário
com peixes vermelhos

leia mais Jacineide aqui.


12.4.06

Joaquim Cardozo


Tarde no Recife

Tarde no Recife.
Da ponta Maurício o céu e a cidade.
Fachada verde do Café Máxime.
Cais do Abacaxi. Gameleiras.
Da torre do Telégrafo Ótico
A voz colorida das bandeiras anuncia
Que vapores entraram no horizonte.
Tanta gente apressada, tanta mulher bonita.

A tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Um carreto gritando — alerta!
Algazarra. Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos holandeses.
Que assistem agora ao mar, inerte das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem de aviões para as costas do Pacífico.
Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
E da beleza católica do rio.


6.4.06

José Carlos Ary dos Santos


A Máquina Fotográfica


É na câmara escura dos teus olhos

que se revela a águaágua imagem
água nítida e fixa
água paisagem
boca nariz cabelos e cintura
terra sem nome
rosto sem figura
água móvel nos rios
parada nos retratos
água escorrida e pura
água viagem trânsito hiato.

Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.
Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado;
por isso, meu amor, viajo a nado
não por ser português mal empregado
mas por sofrer dos pés
e estar desidratado.

Chego. Mudo de fato. Calço a idade
que melhor quadra à minha solidão
e saio a procurar-te na cidade
contrastada violenta negativa
tu única sombra murmurada
única rua mal iluminada
única imagem desfocada e viva.

Moras aonde eu sei.
É na distância
onde chego de táxi.
Sou turista
com trinta e seis hipóteses no rolo;
venho ao teu miradoiro ver a vista
trago a minha tristeza a tiracolo.

Enquadro-te regulo-te disparo-te
revelo-te retoco-te repito-te
compro um frasco de tédio e um aparo
nas tuas costas ponho uma estampilha
e escrevo aos meus amigos que estão longe
charmant pays the sun is shining
love.

Emendo-te rasuro-te preencho-te
assino-te destino-te comando-te
és o lugar concreto onde procuro
a noite de passagem o abrigo seguro
a hora de acordar que se diz ao porteiro
o tempo que não segue o tempo em que não duro
senão um dia inteiro.

Invento-te desbravo-te desvendo-te
surges letra por letra, película sonora,
do sendo à vogal do tema à consoante
sem presença no espaço sem diferença na hora.
És a rota da Índia o sarcasmo do vento
a cãibra do gajeiro o erro do sextante
o acaso a maré o mapa a descoberta
dum novo continente itinerante.


2.4.06

Jorge Fernandes


Meu Poema Parnasiano Sem Número



Ligo a chave propulsora dos meu nervos
Pra melhor sentir toda a emoção que me rodeia...
Que vontade de produzir sonetos...
Trancar-me nos quatorze versos
E berrar sonoridades aos quatro ventos
Pra sensibilizar românticos...
Mas o diacho do ganzá das ruas me perturba...
Jazibande de uma figa! que doidice
De vai-e-vem de overlandes, buíques e chevrolés...

— Ô do cassetete — pára este clube carnavalesco
Que estamos na quaresma! eu sou um grande poeta
De mil oitocentos e noventa e tantos...
Trago de imaginação milhares de sextilhas
E uma miríade de sonetos...
Quero cantar os prós homens... fazer a apologia
De Gutembergue — do incêndio de Roma — das aventuras
De Dom Quixote
Passam bufando motocicletas e os bondes chiando as rodas nos trilhos...

Carroças de gelo... pregões...
Eu não compro jornais nem quero saber se
Lindembergue atravessou Neiorque-Paris — eu quero
A placidez de um lago suíço — um céu de África — uma paisagem de Veneza.
Mas a grande vida brasileira esbarra a inspiração
do pobre poeta que na sua terra tem palmeira
Onde nunca cantou o sabiá... ( Ele só canta no mufumbo e nas catingas...)