alfabeto

28.6.05

Felipe K. Sudo


O gato (3)

Não sei que intensa magia
ou se é apenas
pela arte de um
(buliçoso)
instinto medonho
que da fera recorre-me
traçar sua geometria
—solto manto
a cair
(ricamente)
sobre o molho de ossos,
músculos,
oblíquos olhos:
piscinas cor-de-água.

Que seja, enfim,
à conta da irresistível
sedução que só
ele finca
de um certeiro
ronronar deliberado
que a alma atiça
e do gato só se deseje
a sua forma exata.


leia mais Felipe aqui.


Fake


O gato que se enrosca adormecido esta noite no sofá é só uma metáfora de quem — insone — tenta reinventar lembranças. Que não há.


17.6.05

Ferreira Gullar


Dois e dois: quatro


Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena.

Como teus olhos são claros
e a tua pele morena.
Como é azul o oceano
e a lagoa, serena.

Como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

—sei que dois e dois são quatro
—sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.


Fugaz


Um belo gol (o de Adriano!) do outro lado do mar, no meio da tarde: fugaz felicidade, quando tudo — país, política, decência e ética — parece agonizar.


13.6.05

Porque é 13 de junho: dia meu e dos meus santos-poetas padroeiros!


alquimia


uma pedra,
que isenta de sentir,
cantasse
e, à primeira lágrima,
em sal,
se transmutasse, se
dissolvesse
e,
indolor, para sempre,
emudecesse.

assim, meu coração.


Márcia Maia

~ ~ ~

Meu coração tardou

Meu coração tardou. Meu coração
Talvez se houvesse amor nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, houve em vão,
Tanto faz que o amor houvesse ou não. Tardou.
Antes, de inútil, acabasse.

Meu coração postiço e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
Seu próprio ser do nada houvesse feito,
E a sua própria essência conseguido.

Mas não. Nunca nem eu nem coração
Fomos mais que um vestígio de passagem
Entre um anseio vão e um sonho vão.
Parceiros em prestidigitação,
Caímos ambos pelo alçapão.
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.


Fernando Pessoa

~ ~ ~

Never Give All The Heart

Never give all the heart, for love
Will hardly seem worth thinking of
To passionate women if it seem
Certain, and they never dream
That it fades out from kiss to kiss;
For everything that's lovely is
But a brief, dreamy. Kind delight.
O never give the heart outright,
For they, for all smooth lips can say,
Have given their hearts up to the play.
And who could play it well enough
If deaf and dumb and blind with love?
He that made this knows all the cost,
For he gave all his heart and lost.


William Butler Yeats



5.6.05

Fernando Pessoa


Análise


Tão abstrata é a idéia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim. neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.


Fátuo


Beijo na boca, trem na estação. Casaco de couro protege do frio. Do amor, não.