alfabeto

28.1.05

Emanuel Félix


Pedra-poema para Henry Moore


Um homem pode amar uma pedra
uma pedra amada por um homem não é uma pedra
mas uma pedra amada por um homem

O amor não pode modificar uma pedra
uma pedra é um objecto duro e inanimado
uma pedra é uma pedra e pronto

Um homem pode amar o espaço sagrado que vai de um homem a uma pedra
uma pedra onde comece qualquer coisa ou acabe
onde pouse a cabeça por uma noite
ou sobre a qual edifique uma escada para o alto

Uma pedra é uma pedra
(não pode o amor modificá-la nem o ódio)

Mas se a um homem lhe der para amar uma pedra
não seja uma pedra e mais nada
mas uma pedra amada por um homem

Ame o homem a pedra
e pronto


Eleição


Ao vencedor, os louros, os amores, os poemas. Pouco mais que esquecimento e escárnio a quem antes foi e mais não é. Além da dor, o que obviamente, é apenas um ínfimo e irrelevante detalhe.

21.1.05

Eduardo Domingos



Falta de assunto?

Não!

Sei de Martinus e Adriana Iliescu,
Mais Titã e os sons do infinito.
Sei do tremor da terra
e o flagelo sombrio e nu
que me traíu,
que me cega.
O castigo ténue,
o labirinto,
e a palavra vã.
Sei o tom deste ciclo
que não encerra.
Sei da raiva,
da vida pela manhã,
incontida,
foragida,
em vários credos
atravessada,
pela parca
e pobre Liberdade,
adulterada
nos dias e horas que atravesso.
Sei de mim.
Do Mundo.De ti
e do Mar calmo ao seu regresso.
Sei do poeta
e do amigo.
Por isso,
e sem desculpa,
faltar assunto
é que coisa que eu não digo.


leia mais Eduardo aqui

entrelinha


e se não existissem televisão, computador e telefone, seriam ainda tão imensos o silêncio e a solidão
?


15.1.05

Esther Maria Duarte Lúcio Bittencourt


sara


o lugar onde nasci
o de claras vagas
um dia iria partir.

por fim foi-se onde nasci
quando não encontro mais
a chave de meus dedos

e também onde o sol
calou-se. só aquece
dissolvendo a rala carne

brota toda noite aguda
uma pedra que limo
de dia, e rói o peito

levo-a com cuidados
à fonte onde perfuma o alecrim
sinto na pedra eu em mim

quando encontro os braços
que em loucos devaneios
pensavam ser aragem

revejo o rosto boiando no espelho
estava na água, olhar no astro.
a pedra, esta pedra é meu leito.

ágora onde morri ainda viva
e caminho na tua voz memória
recupero em sopro sua medida

ah, o que devolver não pode
reconstruo-me na ferida
os pés retornam à perna.

há imagem.
mas o lugar onde nasci,
levou-me a este parto à margem

veleja em si consciente a viajem.


leia mais esther aqui e aqui.

Éramos


Éramos a reinvenção da harmonia, a alegria mais pura, o ser a dois, a completude. Éramos — tu e eu — um ser assim, único e a dois, a cada dia, a cada noite. Éramos assim. Éramos? Ou ainda somos?

8.1.05

Emílio Moura


Aqui termina o caminho


Os sinos cantando, as sombras todas se diluindo
dentro da tarde. Dentro da tarde, o teu grave pensamento de exílio.

Por que ainda esperas? Aqui termina o caminho,
aqui morre a voz, e não há mais eco nem nada.

Por que não esquecer, agora, as imagens que tanto nos perturbara
me que inutilmente nos conduziram
para nos deixar, de súbito, na primeira esquina?
Essa voz que vem, não sei de onde,
esses olhos que olham, não sei o quê,
esses braços que se estendem, não sei para onde...

Debalde esperarás que o oco de teus passos acorde os espaços que já não têm voz.
As almas já desertaram daqui.
E nenhum milagre te espera, nenhum.


Exílio


O que restará de mim longe do mar, do azul, do cheiro de jasmim na tarde?



4.1.05

Eduarda Chiote


Total desenlace


Falo-te
da imaginação
de um segundo.
Do festivo
de uma bola de sabonete
encadeada
na sua fugacidade
impiedosa.
Da lucilação
de um arco-íris digno das horas
em que o humedecer
da noite
brinca
— deliciosamente —
com a susceptibilidade
do orvalho.
De um pesar tão fino
que só consigo
senti-lo
levando ao extremo
o esgotamento
da flor em campo
raso.
Falo-te de um pano de cambraia
envolvendo o sopro de
uma criança
morta
— do encontro cada vez mais raro
com o amor.


Elipse


Naquele dia, plenos de olhares e gestos, nos dissemos todas as palavras. Exceto a mais preciosa. Exceto aquela.