alfabeto

30.7.04

Antoniel Campos

Acordado

que seja o teu querer
a exata medida do meu:
somente amanhecer
por saber que o gosto de nós
ainda nos cobre por lençol
e que todas as palavras
com todas as suas curvas
jamais descreveriam
as minhas nas tuas.

Acalanto

 
A canção que em meu corpo inscrevo a cada noite, no teu se faz sentir como arrepio, ao adormecer ou, talvez, ao despertar.
 

29.7.04

Adília Lopes

......

Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações.


Alegria


As vozes de todas as mulheres - mães, avós, irmãs e tias - que desde o início dos tempos existiram, entoavam baixinho um acalanto,  enquanto, a despeito da vento, do frio, da chuva que caía, uma vida nova  desabrochava, surgia. E a chamavam Letícia, que quer dizer alegria.

 

24.7.04

António Gedeão


Impressão Digital 
 
Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
nao vêem escolhos nenhuns.
 
Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
 
Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!
 
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D.Quixote vê gigantes.
 
Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes! 

 

Alegro

 
Do pinheiro ao parapeito da varanda. Da varanda ao ninho no galho do pinheiro. Vai e volta. Vezes sem conta. Na tarde encoberta do sábado, um beija-flor - azul e pequenino -ensaia os primeiros vôos. 
 
 

22.7.04

Alexei Bueno

 
Os Filhos
 
Se fôssemos limpos, de uma outra dor
Viesse quem nos ame, com um diverso amor
Envolvê-los-íamos, talvez menor,
        No crestado olhar.
 
Perdemos a estrada que perderão eles,
Quais nós somos reles eles serão reles,
Logo o horror que é nosso será todo deles.
       E estão a brincar.

 

Andante

 

Na manhã de inverno, azulescer com o dia. E caminhar pelas ruas: calmas, claras, silenciosas, frias.


20.7.04

Armando Freitas Filho


Tosco 
   
A mesa não é de madeira
nem de mármore.
Parece ser de mar.
Da outra, os veios.
Da última, as tábuas
do naufrágio.
O que se escreve nela
não é no risco do horizonte
e sim na linha e no limite
da folha de papel pautado.
E marca o tampo embaixo
onde o tempo passa
mas logo se apaga aos poucos. 
  
 

Adágio

 
Um deslizar de águas. Um sentir inexplicado e ausente. Quase uma melancolia. E o dia azul escorrendo lá fora. Impunemente.
 
 

18.7.04

Anna Akhmátova


Cançoneta

Um colarzinho de contas no pescoço,
as mãos sumindo num amplo regalo.
Os olhos passeiam em torno distraídos
e já não têm mais com que chorar.
 
A seda, que é quase violeta,
faz o rosto parecer mais pálido.
A franja, de cabelos tão lisinhos,
já chega até quase as sobrancelhas.
 
Não se parece em nada com um vôo
esse jeito lento de andar
como se numa jangada pisasse
e não nas pranchas firmes do assoalho.
 
A boca pálida, entreaberta,
o fôlego cansado, ofegante...
contra o peito treme o ramalhete
deste encontro contigo que não houve. 
  

tradução: Lauro Machado Coelho 
 



Almoço


O silêncio serve-se em copos pequeninos, de vidro vermelho, à mesa desse almoço, onde almoço só. E neles, vêm beber, sedentos de verão, os passarinhos.

 
 

17.7.04

Ana Luísa Amaral


Soneto Científico a Fingir  
  
Dar o mote ao amor. Glosar o tema
tantas vezes que assuste o pensamento.
Se for antigo, seja. Mas é belo
e como a arte: nem útil nem moral.
 
Que me interessa que seja por soneto
em vez de verso ou linha desvastada?
O soneto é antigo? Pois que seja:
também o mundo é e ainda existe.
 
Só não vejo vantagens pela rima.
Dir-me-ão que é limite: deixa ser.
Se me dobro demais por ser mulher
[esta rimou, mas foi só por acaso]
 
Se me dobro demais, dizia eu,
não consigo falar-me como devo,
ou seja, na mentira que é o verso,
ou seja, na mentira do que mostro. 
 
E se é soneto coxo, não faz mal.
E se não tem tercetos, paciência:
dar o mote ao amor, glosar o tema,
e depois desviar. Isso é ciência!      
   

Anoitecer


Temporal. Tanto chove que o céu se faz rosado. Na rua, só carros e vento. Aqui dentro, um concerto de Mozart e um copo tinto de vinho. Além de um resto de sábado.  
  

16.7.04

Adélia Prado


A Serenata

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natal como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Amanhecer


 
Acordar antes que nasça o sol: genética ou sina?  Em qualquer dos casos, um incômodo.
Os pássaros cantam. O mundo dorme. O céu hesita em azulecer. E uma chuva fina relembra, a todo instante, que é inverno.  Dia da padroeira: é feriado. E a meteorologia afirmou que vai chover...